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A ORIGEM DA PALAVRA 'SAUDADE" AINDA CAUSA POLÊMICA

Eu li e repasso pra vocês: 

Os portugueses não gostam que os brasileiros falem português

Pronto, estou a exagerar. Mas às vezes parece!

Há poucas horas encontrei um post num grupo do Facebook sobre tradução em que uma tradutora portuguesa partilhava um post duma empresa de tradução brasileira, afirmando-se insultada.

O que dizia o tal post? Simplesmente isto (atentem no insulto):

“Saudade”, uma palavra genuinamente brasileira.

O autor brasileiro é bem capaz de ficar a coçar a cabeça… “Mas que disse eu de errado?” Por que razão se sentiu a tradutora portuguesa insultada por esta declaração tão inócua?

Os comentários ao post são também curiosos. Houve quem acusasse o autor de ignorância ou de querer afirmar que “saudade” é uma palavra de origem brasileira, etc. A indignação foi muita, a surpresa de qualquer brasileiro que por ali parasse seria maior ainda.

Tentei argumentar um pouco, dizendo que erro seria dizer que “saudade” é uma palavra “exclusivamente” brasileira. No entanto, muito do que disse caiu em saco roto. A frase era incomodativa para muitos, e houve quem lembrasse, out of the blue, o acordo ortográfico, que é a bête noire dos portugueses no que toca à língua portuguesa. Tudo por causa duma palavra que não pode ser genuinamente brasileira! Nem pensar!

Mas que raio?…

Ora bem, o que se passou foi o seguinte (digo eu—que posso estar errado):

  1. O autor brasileiro estava a falar duma palavra da sua língua, que é uma palavra que sente como genuína dessa língua (portuguesa) e da sua cultura (brasileira) e é, portanto, uma palavra genuinamente brasileira.
  2. Os portugueses que comentaram a frase fazem uma outra associação. Desde pequenos ouvem dizer que “saudade” é uma palavra portuguesa, o que é obviamente verdade. Ouvem também dizer que é uma palavra que só existe em português e da qual devemos ter orgulho. Sendo o nome da língua indistinto do adjectivo que nos caracteriza enquanto povo, não fazemos convenientemente a distinção entre o que é uma palavra em português e uma palavra portuguesa. Se dizemos que “saudade” só existe em português, no nosso íntimo associamo-la, em exclusivo, à cultura portuguesa. Ouvir um brasileiro dizer que é uma palavra genuinamente brasileira enche-nos de estranheza, de confusão—e consideramos a coisa quase tão insultuosa como um espanhol dizer que a “saudade” é genuinamente espanhola.

Para destrinçarmos toda esta confusão, convém atentarmos na palavra “português”. Esta palavra tem vários significados, entre eles:

  1. (n.) pessoa com nacionalidade portuguesa.
  2. (n.) língua românica oficial em oito países.
  3. (adj.) relativo a Portugal e aos portugueses [tal como “brasileiro” significa “relativo ao Brasil e aos brasileiros”].
  4. (adj.) relativo ao português e à língua portuguesa [falada por portugueses, brasileiros, angolanos, etc.].

O brasileiro que escreveu a frase sabe distinguir entre os vários significados. Há, claro, uma associação entre todos, mas não deixam de ser significados separados. Um brasileiro pode dizer, sem qualquer dificuldade, que uma palavra é portuguesa, no sentido 4., sem querer com isso dizer que não é brasileira. Pode ainda dizer que uma palavra é brasileira (no sentido de “relativa aos brasileiros e ao Brasil”) sem deixar de defender que é portuguesa (no sentido 4.). “Saudade”, para um brasileiro, é uma palavra portuguesa (“em português”) e brasileira (“relativa ao Brasil e aos brasileiros”).

Já para um português, os sentidos estão misturados. Achamos que uma palavra portuguesa [4.(=“em português”) é sempre uma palavra acima de tudo portuguesa [3.] (=“relativa aos portugueses”). Para nós, “saudade” é uma palavra portuguesa e, por isso, pertence, acima de tudo, aos portugueses e a Portugal. Ficamos irritados quando os brasileiros dizem que essa mesma palavra é também muito brasileira.

Claro que isto não faz sentido: se acharmos que os brasileiros só podem chamar genuinamente brasileiras as palavras que não sejam partilhadas com os portugueses, estaríamos a dizer que, no fundo, falam uma língua estrangeira desde a nascença e que pouco há de genuinamente brasileiro. E que os americanos também falam uma língua estrangeira desde a nascença e pouco têm de genuíno. O mesmo diríamos dos escoceses, dos argentinos, dos belgas, dos suiços, etc.

Não faz sentido, mas é uma reacção imediata (“gut reaction”) genuinamente portuguesa... Está associada à forma como muitos portugueses dizem “brasileiro” para descrever a língua falada pelos brasileiros, como muitos portugueses ficam admirados quando um estrangeiro diz que aprendeu português mas desata a falar com sotaque brasileiro, como muitos portugueses dizem que existe um sotaque brasileiro mas não existe um sotaque português, etc. No fundo, muitos portugueses acham que os brasileiros falam uma língua emprestada e deviam ter respeitinho a quem lhes emprestou essa língua. (Alguns vão mais longe e acham que os brasileiros andaram a estragar a língua…)

Ora, para um brasileiro, a língua portuguesa é sua. Pode ser doutros também, incluindo os portugueses, mas é, indubitavelmente, sua. Que tenha um nome “estrangeiro” não importa muito. Sempre aprendeu português e sempre associou a língua portuguesa ao Brasil de forma tão íntima como os portugueses associam a língua portuguesa a Portugal. Um brasileiro não está constantamente a lembrar-se de que há uma ligação a outros países com a mesma língua, da mesma forma que os portugueses também não fazem essa associação sempre que falam da língua portuguesa. Para um brasileiro, uma palavra em português é, por definição, uma palavra brasileira, porque o português é a língua dos brasileiros. Claro como água—mas estranhíssimo, e até ofensivo, para ouvidos portugueses.

Para os portugueses a língua portuguesa é acima de tudo portuguesa. Que os brasileiros a falem é um pormenor de somenos importância. E, atenção, dentro desta forma de pensar, os brasileiros deviam lembrar-se que falam uma língua dos portugueses sempre que se atrevem a falar de palavras da sua língua!

Confesso que este problema é um problema que tem consequências negativas acima de tudo para os portugueses, que assim revelam uma visão limitada e mais pobre da sua própria língua. Sim, fomos nós que pegámos num dialecto da zona do Minho (falado entre a Galiza e o Norte do que é hoje Portugal) e lhe demos estatuto de língua oficial. Fomos nós que desenvolvemos essa língua nos primeiros séculos—e fomos nós que pegámos nela e a levámos a outros locais, que assentámos arraiais no outro lado do Atlântico e nos misturámos com outras raças e culturas e criámos o Brasil—e por lá ficámos. Não se esqueçam que os brasileiros não importaram o português: os brasileiros são os descendentes dos portugueses que levaram o português até àquelas paragens.

E não se esqueçam que as línguas são de quem as fala, desde a nascença, conhecendo o sabor particular que cada palavra tem na língua de cada um, um sabor que muda de lugar para lugar, de época para época, mas que não é propriedade de ninguém. Porque o português é mesmo de todos nós— genuinamente de todos nós.

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